domingo, 31 de janeiro de 2010

Direito de criação e direito de clientela

Direito de criação e direito de clientela
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A visão clássica do Direito Comercial:

Aviamento, clientela e fundo de comércio 2
Bigodes & criatividade 2
O fundo de comércio 4
O comércio de aviamento 5
Um bem inconspícuo 6
Miragem & futuro 6
O bem concorrencial 7

O caso particular da propriedade imaterial de que trata a Propriedade Intelectual é a de uma criação estética, num investimento numa imagem, ou então uma solução técnica, cujo valor de troca merece proteção pelo Direito. .
Uma análise mais cuidadosa da questão revela que, neste caso também, há de início um direito de oportunidade - o de explorar o mercado propiciado pela criação imaterial. . A exclusividade legal apenas apropria este mercado novo, localizado, em benefício do criador . .
Tal ocorre de forma inteiramente similar à situação jurídica do empresário que explora sua atividade em estabelecimento sito em imóvel sob locação, resguardando-se a posição privilegiada do empreendimento, adquirida pelo desenvolvimento do negócio naquele local, com criação de clientela específica. . O objeto do direito exclusivo é a posição no mercado representado pelo local de operação e significa um direito à percepção de rendimentos eventualmente produzidos em resultado da continuação de uma atividade no mesmo local . .
Pode-se, já neste ponto, precisar o de propriedade imaterial, caracterizando o poder, atribuído classicamente ao proprietário, como um direito subjetivo absoluto. . O controle, ademais, não é um poder-dever, já que guarda pelo menos um certo grau de voluntariedade em seu exercício; não se trata, pois, de uma potestade. . Especificando assim a primeira noção, poderíamos dizer que propriedade no sentido clássico é o exercício de um poder jurídico absoluto e exclusivo sobre um bem econômico, visando a um interesse próprio. .
Por aproximação, costuma-se denominar estes direitos absolutos exclusivos sobre bens econômicos imateriais, o bem-clientela, “propriedade imaterial”. . Como os objetos resguardados são, em princípio, res communes omnium (a criatividade industrial e o mercado), parte da doutrina entende que tais direitos são um monopólio constituído em favor de seus titulares. .
Este conceito de propriedade, elaborado através da análise da estrutura dos direitos, compatibiliza tanto o dominium romano quanto a noção de “propriedade sobre o valor de troca” definida na jurisprudência americana . . Concebida como um poder, quando exercida sobre um conjunto de bens materiais e bens imateriais, constituído para gerar valores de troca (a empresa) a propriedade não é um poder “passivo”. . Não é um poder de conservação, mas de ampliação. .
A visão clássica do Direito Comercial: Aviamento, clientela e fundo de comércio
O Direito Comercial clássico tem enfrentado os aspectos concorrenciais do Direito através de uma série de categorias do pensamento jurídico, como as de fundo de comércio , aviamento , clientela , ou, genericamente, estabelecimento . . Sem ousar reproduzir aqui toda a ampla e já secular discussão, vamos lembrar alguns dos pontos relevantes desta doutrina. .
Bigodes & criatividade
Aviamento não é só o que o farmacêutico faz com sua receita, ou o que o alfaiate usar para preparar seu terno). . É, em Direito, o conjunto de elemento imateriais de um estabelecimento comercia, que organiza os seus elementos humanos e físicos numa estrutura destinada a produzir o lucro. . Sem o aviamento, o balcões, o estoque e o pessoal de uma sapataria seriam um conjunto desorganizado incapaz de gerar receita, quanto mais lucro . .
Um armazém de secos e molhados às antigas, comparado com um supermercado, mostram-se semelhantes, enquanto empresas voltadas para um mesmo mercado, disputando a mesma clientela. . Apenas os diferencia o aviamento. .
O armazém, com seus balcões de pinho ensebados, o charque e o bacalhau pendurados em ganchos, caixeiros lentos e dono de grandes bigodes, configura um conceito mais pessoal e mais defensivo de comercialização. . Em oposição, há a fórmula na qual o cliente escolhe sozinho a mercadoria nas prateleiras, sem intervenção dos vendedores, livre do balcão; isto, somado com o pagamento à saída, caracteriza um estilo de aviar a seção de vendas que, impessoal e sedutor revolucionou o comércio de bens de consumo não duráveis. .
Segundo esta definição, toda empresa tem aviamento. . Ë o valor do aviamento - sua complexidade, eficácia, capacidade de adaptação - que vai diferenciar uma empresa no mercado, fixando sua posição na concorrência. . Nesta perspectiva tão genérica, pode-se certamente questionar a validade prática da noção de aviamento, que é também caracterizado como a “idéia organizativa” da empresa . .
Mas ao se considerar uma noção derivada, a de “elementos do aviamento”, o sentido pragmático avulta. . Segundo os autores de direito comercial, o aviamento é a soma da tecnologia administrativa e industrial, da marca, dos direitos de monopólio, do ponto comercial , enfim de um conjunto de elementos intangíveis, cada um dos quais voltados à conquista ou manutenção da clientela. .
A noção de que um método de vendas - armazém ou supermercados - integre o aviamento é fácil de aprender; menos simples é perceber que a estrutura administrativa também é parte da “idéia organizativa” . . Ainda mais difícil é reconhecer à tecnologia industrial- tão mitificada como deusa da modernidade - o modesto status de parte da concepção empresarial, a mui reduzida tarefa de arrumar o galpão, dispor as máquinas, organizar o trabalho e comprar os insumos certos. . No entanto, quase todas as definições de tecnologia enfatizam seu aspecto de organização de conhecimentos e habilidades, para o fim da produção econômica. .
O mérito da noção de aviamento é evidenciar, para cada elemento intangível da empresa, o seu papel na estrutura produtiva, coisa que a análise econômica clássica se empenhou em fazer, apenas quanto aos aspectos financeiros, tangíveis ou relativos ao trabalho. . Colocando a criação intelectual, invento, design ou método de vendas perante a questão crucial da clientela, o aviamento leva, às suas verdadeiras proporções, uma atividade humana envolta em charme e mistério - a criatividade. ..
O fundo de comércio
Tendo dado um passo em direção à especificidade ( tecnologia industrial é algo mais próximo à experiência cotidiana do que aviamento), vamos agora na direção inversa. . A soma de tais elementos intangíveis, acrescida da própria clientela, tem recebido tradicionalmente o nome de “fundo de comércio” . .
Pois convém prosseguir nossa análise por esta última idéia, ainda mais abstrata do que a de aviamento. . Razões históricas o justificam: já no tempo de Dante e Petrarca (como vimos ao falar do jus intraturae) as cidades italianas tinham legislações especificas, protegendo o direito do comerciante ou artificie de manter intacto seu fundo de comércio. .
Imaginemos um ferrador que aluga um galpão e começa a exercer seu ofício. . Sua competência, sua experiência, até mesmo suas qualidades pessoais atraem fregueses, que se perpetuam e captam por sua vez novos usuários para os serviços de ferra. . Ao término da locação, não parece razoável que o locador, nada tendo colaborado para criar tal clientela, possa dela se apropriar, instalando no mesmo ponto um competidor do antigo inquilino ou nele se aboletando pessoalmente (se tal fosse permitido pela corporação de ofício pertinente). .
Pois tais leis, já há 500 ou 600 anos, prescreviam o que, em substância, diz nossa lei de luvas: o locatário comercial tem proteção legal ao gozo de sua clientela; não cabe dela privá-lo, removendo-o do imóvel locado a qualquer pretexto. . O direito francês vai mais longe, concebendo tal proteção como sendo uma “propriedade comercial” ao lado da propriedade industrial. . Considerando este direito do locatário, mais valioso do que o interesse do locador de reaver o imóvel, o de permanecer no local que configura seu fundo de comércio. .
Este fundo de comercio, ainda que tão radicado no imóvel, acabou por desenvolver no direito comercial uma sensibilidade especial para a questão da clientela. . Noções como achalandage, a capacidade de um bar de aeroporto atrair a freguesia em transito só por sua localização; a idéia oposta de “clientela”, resultado de talentos pessoais do comerciante ou artífice; a distinção resultante entre aspectos pessoais e materiais do fundo de comércio; o estatuto jurídico do mercado autônomo onde se negociam fundos de comércio; tudo vem desta elaboração já clássica em Direito. .
O comércio de aviamento
Também já existiu uma noção antiquada, da qual hoje mal existe memória. . Era o principio (em vigor entre nós até o Código de 45) de que uma marca só pode ser vendida ou licenciada junto com o respectivo fundo de comercio. . Outrora se pensava que ninguém transfere realmente a capacidade de fazer um produto - aquele indicado pela marca - sem o respectivo estabelecimento, leia-se maquinas, equipamentos, instalações , equipe, organização, enfim aviamento e tudo mais. . Mas isso era no tempo em que se cria na correspondência entre um conjunto de características técnicas e uma marca, na veracidade substancial das coisas veiculadas sobre um produto através do signo distintivo. .
Com a transformação geral nos sistemas de comercialização, principalmente com a emergência dos novos meios de comunicação de massa e com o aperfeiçoamento das técnicas de marketing e de sedução publicitaria, a marca se transforma num meio de diferenciação entre produtos sem qualquer referencia a sua qualidade intrínseca. . Vide o que ocorre no mercado de cigarros. .
Poder-se-ía também supor que a tecnologia se tornou mais portátil, menos vinculada à habilidade pessoal dos trabalhadores e engenheiros, menos incrustada nos equipamentos e instalações físicas; enfim, mais imaterial. . No momento em que isto ocorre, também se alteram as legislações, para permitir venda ou licença de marca, ainda que se passe a exigir (agora em defesa do consumidor) controle de qualidade do licenciante sobre o licenciado. . Isto, para que o produto fabricado sob licença não se distancie muito do original. .
Tanto legal quanto economicamente, isto denota a nova importância dos elementos do aviamento como bem jurídico, autônomo em face dos elementos imateriais da empresa, inclusive com mercado próprio. . O mercado do aviamento. ... .
O comércio de tecnologia, o comércio de marcas, até o comércio do aviamento inteiro através do sistema de franchising são fenômenos relativamente recentes a se somar ao velho traspasse de ponto, como negócios típicos de clientela. .
Como um bem de uso, o aviamento representa a capacidade de entrar num mercado, nele manter-se ou mesmo de adiantar-se à concorrência, captando maior clientela do que seria a probabilidade estatística de um empresário sem clientela . .
Pois bem, este mercado autônomo dos elementos imateriais da empresa dá ainda ao aviamento o status de bem de troca. . O investidor, sem deixar de lado nem um dos cliente ativos da empresa, pode ate tirar proveito da clientela potencial que não tem condições legais, financeiras ou materiais de explorar por si só, licenciando a terceiros a patente, marca, tecnologia ou constituindo um sistema de franquia. ..
Um bem inconspícuo
Animal tímido, o aviamento tem dificuldades de ser revelar em publico. . Habituados a tratar somente com débitos e créditos, os balanços não refletem quase nunca os bens que a empresa gera sozinha, como aviamento. . Ele normalmente surge como ativo contábil só no balanço de uma empresa que, adquirindo ativos de outra, passa a reconhecer parte dos valores pagos em excesso ao valor patrimonial da adquirida como “fundo de comércio”, antecipação de lucros, clientela, etc. .. Indiretamente ele também se distingue nos ágios das aquisições de participação relevante em outras empresas . .
Via de regra, enquanto permanece oculto ou, mesmo se revelado no balanço, enquanto não reclassificado em outra rubrica, o aviamento não se sujeita a tributação do imposto sobre a renda. . Alem disto, a legislação brasileira, numa medida sem exemplo no Direito Tributário convencional, passou a permitir, desde 1977 a reavaliação não tributada do ativo imobilizado. .
A conseqüência prática disto é que uma marca ou patente - reconhecida no ativo imobilizado apenas pela soma das retribuições ao INPI e eventuais honorários do advogado - passam a ser consignadas por outro valor, em tese o real que pode ser o de uma hipotética venda ou da antecipação da receita futura resultante do item do aviamento . .
Esta singularidade de nossa lei possibilita ate mesmo (ao contrario do que se disse até agora) tirar certos elementos do aviamento das sombras, fazendo-os aparecer no balanço quando convier ao titular da empresa, independentemente de venda de ativos ou de participação societária. . A tributação só e imposta, segundo nossa lei, no momento em que o valor da marca, patente, etc. .. e realizado pela venda, pelo aumento de capital, pela amortização, etc. ..
E claro que os frutos do comercio de aviamento ou de seus elementos aso inteiramente sujeitos a tributação. . Os royalties, o preço da venda de uma patente ou marca, o sobrepreço na venda de ativos ou de participação vinculado ao fundo de comércio - tudo isto é sujeito aos tributos usuais, com pequenas alterações em casos específicos. .
Miragem & futuro
E um exemplo de obra de ficção: uma loja alugada, com equipamento arrendado, mão de obra temporária, capital de giro tomado em banco, e , para terminar, a empresa operando sob franquia. . Alem do crédito (ou da credulidade de bancos e fornecedores), não ha sequer um átomo das relações de propriedade que, em tese, cimentariam o capitalismo nesta empresa hipotética, mas tão real e cada vez mais freqüente. .
No nosso exemplo o que mais impressiona e a inexistência do aviamento próprio. . Quem opera sob franquia, estrutura sua empresa (ou, nos casos mais brandos, seu setor de vendas) segundo padrões uniformes, alheios, pelos quais passa a alcançar a clientela potencial do franqueador, explorando-a com a máxima eficácia. . Na franquia, como o operador se disfarça inteiramente sob a pele do franqueador, a clientela se transforma de potencial em efetiva. . Mas fica sempre sendo do dono da franchise, não de quem trabalha a empresa e lhe assume os riscos. .
Como acontece no caso extremo do franchising (onde se aluga todo o aviamento), também a empresa, que se utiliza de elemento do aviamento alheio, acaba por criar clientela para outras pessoas, ficando apenas com a miragem de um negócio próprio. . Quem aluga (ou licencia, diz-se com mais elegância) tecnologia alheia, cultiva uma clientela que perderá a capacidade de explorar ao termino da licença. . O mesmo ou mais se dirá de quem licencia marca alheia, quando então não só a clientela permanece alheia, como até tem consciência disto. .
Mesmo quem adquire a tecnologia, sem compromisso de deixar de usá-la ao fim do contrato, se não ganha também a capacidade de refabricar a tecnologia, adaptando-se as alterações do estado da arte, passa a exaurir seu aviamento como quem consome uma mina ou uma floresta sem renová-la. . Economicamente, esta na situação de um índio nômade que, esgotada toda a caça e pesca de sua área, tem de mudar-se para sobreviver - não chegou, empresarialmente à fase do pastoreio. .
O bem concorrencial
Caberia, é certo, formular aqui a doutrina dos “bens concorrenciais”, como uma categoria do pensamento jurídico capaz de avaliar na identificação do estatuto teórico do “estabelecimento”, da “clientela”, do “aviamento”, etc. .
Já nos referimos anteriormente à existência de um direito de explorar uma oportunidade comercial, dentro dos limites da concorrência; o objeto deste direito viria a ser, exatamente, esta oportunidade comercial, esta posição perante o mercado. . Em regimes econômico-políticos diversos, o acesso ao mercado era rigidamente tutelado, e o direito de que falamos surgia como concessão, delegação a particulares da exploração de um bem público. . Com o princípio da liberdade de comércio , tal direito se esmaece, para ir se confundindo com as liberdades gerais, os direitos humanos, com sua configuração de direito subjetivo ficando menos proeminente. .
Ora, é interessante notar que o exercício desta liberdade, pode prejudicar terceiros, e, mesmo, que o intento do seu exercício seja prejudicar terceiros: quem se estabelece numa cidade para competir com as empresas já lá operando no mesmo setor tem certamente o desígnio de causar dano aos comerciantes já estabelecidos, tomando sua clientela . . É parte deste direito a faculdade de prejudicar, dentro de certos limites prescritos pelo uso comercial; comparavelmente, o direito internacional público estabelece limites à faculdade de exercer guerra, protegendo os prisioneiros, as populações civis, etc. .
O bem concorrencial surge no espaço destes limites, a partir dos quais é ilegal o exercício do direito de concorrer pela mesma clientela. . Se há um monopólio legal, se só um empresário pode explorar o mercado, não existirá a fricção entre direitos de mesmo objeto: é o que ocorre com os privilégios de invenção, por exemplo. . nestes casos, o bem concorrencial tem sua eficácia claramente demarcada. .
Contudo, a concepção de um bem concorrencial é difícil, enquanto considerada a noção da oportunidade comercial como uma liberdade, a ser apenas coibida na hipótese de um uso excessivo . . O que contribui para o melhor entendimento desta categoria jurídica é o fato de que a oportunidade de que se fala é passível de venda: constata-se que, singularmente, uma liberdade tem preço, corretores e mercado. .
O interesse econômico, objeto da venda, não é a liberdade que afinal qualquer um tem, mas algo que se expressa como uma vantagem objetiva de um sobre os demais titulares do mesmo direito. . O dono de uma loja bem conceituada num bom ponto tem, sobre o homem da rua, a vantagem da reunião do capital necessário, da organização dos meios empresariais, da sorte de conseguir um local bem atendido pela clientela; e, sobre seu concorrente imediato, as peculiaridades do ponto e da organização que fazem de seu estabelecimento uma unidade particularmente lucrativa. .
Cede-se, assim, não a liberdade, mas os meios de exercê-la e, com eles, uma determinada posição econômica definida pela expectativa de obter receita futura, em face da aptidão dos meios e os lucros já obtidos no passado. . Arriscando-nos a um paradoxo, cede-se a um crédito real, uma confiança nas vantagens futuras, a mesma confiança atuária que existe no contrato de uma venda futura, no seguro, na aposta, e em todas operações de crédito. .
Como já visto, esta expectativa, que pode ser cedida, deriva, em parte da organização da empresa para a sua atividade econômica específica; e, em parte, da quantidade de poder econômico que resulta desta organização, e que se expressa na perda relativa que o consumidor sofreria ao escolher outra empresa para satisfazer suas necessidades ou desejos. . Em última análise, assim, cede-se uma posição de poder econômico. .

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